sexta-feira, 25 de março de 2011

OS DOIS SANTOS QUE FALAM

Retomemos a interpretação do restante texto do profeta Daniel. Aqui o profeta ouve o diálogo entre dois seres celestes aos quais chama “santos”.
a) A pergunta - v. 13 - “Depois ouvi um santo que falava e disse outro santo àquele que falava: - até quando durará a visão do contínuo e da transgressão assoladora para que seja entregue o santuário e o exército, afim de serem pisados?”
a)- A questão do tempo: - A pergunta foi feita nestes termos: - “(…)até quando” mostra claramente que o contexto que a motiva é de opressão e, em resposta à mesma, faz-se eco de um juízo, julgamento, para a reposição da normalidade.
A questão em causa está ligada a um determinado tempo. Assim sendo, é inevitável que nos perguntemos acerca do início da mesma. Convém, no entanto, recordar a este propósito as palavras do anjo que informava o profeta: - “a visão se realizará no fim do tempo” – v. 17,19, ou ainda: - “a visão da tarde e da manhã é verdadeira (…) só daqui a muitos dias se cumprirá” – v. 26. Estas palavras são significativas visto que a noção “fim dos tempos” está presente ao longo deste capítulo.
b)- Vejamos a palavra traduzido por - “a visão” – Para a mesma palavra na nossa língua encontramos no original dois termos distintos, mas que são traduzidos pela mesma palavra: 1- chazon (visão); 2- mar’eh (aparição).
– chazon (visão) – aparece cerca de seis vezes ao longo deste capítulo – Daniel 8.2 (2 vezes),13,15,17,26b. O termo chazon (visão), como se encontra em Daniel 8.13, remete, segundo o contexto, para a visão do carneiro e do bode e do chifre pequeno, tal como o v. 2 claramente o indica.
- mar’eh (aparição) – aparece cerca de três vezes neste mesmo capítulo – Daniel 8.16,26a, 27. O termo mar’eh (aparição) remete de uma forma mais restritiva, efectivamente, para o aparecimento daqueles seres celestiais que estabelecem a conversação. Resumindo: - mar’eh (aparição) na qual o profeta se integra pelo quanto ouve. Enquanto que chazon (visão) corresponde à “visão do carneiro, do bode com os seus chifres e do chifre pequeno.
c) – O verso fala de “transgressão/pecado assolador/a”. A palavra pesha que é traduzida por – pecado ou transgressão – é a mais forte das existentes, a saber: 1- hatah – falhar o objectivo; 2- awon – afastar-se do caminho; 3- pesha – revoltar-se, rebelar-se.
Aqui no texto, para mostrar a profundidade da luta do chifre pequeno contra Deus, o profeta utilizou a palavra pesha a qual exprime a revolta daquele que a veicula. Assim, “em toda a parte onde o pecado se manifesta, ele suprime a comunhão com Deus e faz com que o homem fique entregue a si mesmo”.401 Esta palavra é empregue para mostrar a força e intensidade desta revolta, deste atentar contra terceiras pessoas. Esta ideia está perfeitamente expressa quando refere: - “(…) a ver se não meteu a sua mão na fazenda do seu próximo” – Êxodo 22.8. Assim, pesha “designa sempre o atentado aos direitos de outrem”.
Este termo encontramo-lo no capítulo seguinte, onde se lê: - “para fazer cessar a transgressão” - Daniel 9.24. Ou seja, um tempo determinado dado em favor do povo de Israel para terminar com as transgressões da nação. De igual modo encontramos esta palavra relacionada com a festa do antigo Israel da purificação do santuário - Dia das Expiações. E, tanto em Daniel 9.24, como em Levítico 16.16,21 ela se aplica ao povo de Deus. Voltando ao texto: - ao unirmos estes dois termos – “transgressão/pecado assolador/devastador/a”, o agente que qualifica a transgressão/pecado e que aqui é traduzido por “assolador/devastador”, por vezes a mesma palavra é vertida com o sentido de “desolação”, tal como a encontramos em – Daniel 9.27;11.31;12.11 – “abominação da desolação”. Tendo em linha de conta o que acaba de ser dito, a expressão “transgressão assoladora” ou “pecado devastador” é o resultado decorrente da transgressão religiosa e cultual levada a efeito pelo chifre pequeno, ao estabelecer um sistema que conduz ao exercício de um ministério de mediação rival do que é praticado no santuário.
d) – A parte final do versículo diz que “o santuário e o exército serão pisados” – 13b. A expressão “pisar” encontramo-la, por exemplo em – Isaías 10.6; Miqueias 7.10 – ou seja, com o sentido de alguém que é subjugado por um inimigo. De igual modo, a ligação desta palavra ao santuário e ao exército, não comporta, em si mesma, a ideia de sujidade ou profanação, mas sim a de os destruir ou de os tornar inoperantes.
b) A resposta - v. 14 – “E ele me disse: Até duas mil e trezentas tardes e manhãs e o santuário será purificado”.
Vejamos a primeira parte deste versículo sob três vertentes: 1- Pseudo interpretações; 2- factor temporal; 3- factor de precisão.
1- Pseudo interpretações
Alguns intérpretes das Escrituras afirmam que a supressão do sacrifício (tamid) durará “2.300 tardes e manhãs”, equivale a 1.150 dias completos, dizendo que é por causa “dos sacrifícios omitidos, que se deveriam oferecer um pela manhã e outro pela tarde”. O raciocínio é evidente: - se é dito que a suspensão do sacrifício prolongou-se ao longo de 2.300 tardes e manhãs, ou seja duas partes do dia, então bastará juntá-las e teremos então os tais 1.150 dias completos! Tudo isto na tentativa de fazer coincidir os dizeres do texto de Daniel com a personagem Antíoco IV Epifânio! Iremos considerar algumas objecções contra esta forma de interpretar o texto em causa, pois é contrário ao claro ensino bíblico.
a) - O ritual do sacrifício (tamid) no Antigo Testamento é designado pela expressão - sacrifício contínuo – cf. Êxodo 29.38-42; Números 28.3-6 – o qual caracteriza a dupla oferta consumida pela manhã e à tarde. Assim, é a soma das partes que constituem o sacrifício contínuo e não cada uma em separado. Em consequência, a divisão para metade feita por alguns comentaristas é um atropelo grosseiro à clareza e significado do texto.
b) - A sequência “tardes-manhãs”, ou seja, a tarde precede a manhã não tem qualquer relação com os sacrifícios acima mencionados, pois estes são sempre mencionados e praticados em sequência inversa, isto é, a manhã precede a tarde. Portanto, contrariamente ao que alguns pretendem, a expressão “tardes-manhãs” não está ligada aos sacrifícios (tamid), mas a uma medida de tempo.
c) - Não existe suporte, no interior do texto bíblico, para que se possa contar 2.300 tardes e manhãs para que correspondam a duas partes do dia. E, fazendo a junção de ambas equivaleria à obtenção de 1.150 dias completos.
A sequência de uma tarde e de uma manhã, como expressão de um dia inteiro, aparece pela primeira vez no relato da Criação - Génesis 1. 5,8,13,19,23,31 - reflectindo-se esta mesma linguagem em Daniel 8.14,26.
2- factor temporal
Tanto o início como o fim deste período de tempo compreendido pelas “2.300 tardes e manhãs” não nos são facultados, neste capítulo, pelo profeta. O ponto fulcral deste texto repousa mais sobre os acontecimentos que terão não tanto no início ou enquanto durar este período mas, essencialmente, no fim do mesmo – Daniel 8.13,14 - e para lá deste. Tal noção pode ser plenamente justificada pelas palavras daquele que dava a conhecer este período de tempo, ao mostrar claramente no v. 26 dando a entender que esta visão teria mais desenvolvimentos num futuro próximo, cerca de 13 anos – tempo que separa esta visão do capítulo 8 e a do capítulo 9 - para continuar e explicar, pelo mesmo ser celeste, o que ficou incompreendido – “(…) pois não havia quem a entendesse” – v. 27.404 Deste modo, podemos ver alguns pontos de contacto entre estes dois capítulos, a saber:
a) – O anjo encarregado de revelar e explicar a mesma visão é o mesmo – Gabriel – Daniel 8.16,17,19; 9.21-23
b) - Os termos usados são semelhantes. A palavra - visão – “mar’eh”, como já vimos, encontramo-la em Daniel 8.16,26,27. Estes versículos aludem à visão das 2.300 tardes e manhãs. Ora, este mesmo termo encontra-se no capítulo a seguir; o qual, no fundo, está directamente ligado ao quanto foi anteriormente revelado, muito embora tenha ficado incompreendido. Desta forma o anjo admoesta: - “(…) toma, pois, bem sentido na palavra e entende a visão (mar’eh) – Daniel 9.23.
c) – No que se refere à compreensão da visão, o anjo recebe ordens para “dar a entender a este (Daniel) a visão (mar’eh)”- Daniel 8.17 (sublinhado nosso). Mais tarde, o mesmo anjo repete o mesmo conselho ou admoestação ao profeta “(…) entende a visão (mar’eh)” – Daniel 9.23.
d) – Também o tema do santuário está presente em ambos os capítulos. Como pudemos ver – Daniel 8.13,14 – aborda claramente a problemática do santuário. No capítulo seguinte encontramos o mesmo vocabulário inerente ao serviço do santuário: “expiar a iniquidade” “ungir o santo dos santos” – Daniel 9.24-27.
e) – Nos dois capítulos – 8º e 9º -, tanto num como no outro, existe uma revelação auditiva. Na 1ª, o elemento temporal – Daniel 8.13,14 - não era conhecido do profeta – Daniel 8.26,27; na 2ª, pelo contrário, o factor tempo ocupa o primeiro plano, pois nela é dado a conhecer o início do período mencionado na primeira, como veremos na lição seguinte - Daniel 9.24-27.
3- factor de precisão
Após a menção do longo período de tempo “2.300 tardes e manhãs” que revela, de uma forma precisa e concisa, que é uma porção longa de tempo, e que está intimamente ligada a acontecimentos que colocarão um ponto final aos movimentos do poder personificado pelo chifre pequeno. Agora iremos, por fases, debruçar-nos, nesta segunda parte deste versículo, para vermos o que deverá acontecer no final deste período, ao dar-nos a conhecer: – “e o santuário será purificado” – Daniel 8.14b.
a) Afinal, de que purificação (nisdaq) se trata? Curiosamente, esta palavra é empregue uma única vez no Antigo Testamento, e essa é precisamente aqui. É necessário compreender esta “purificação do santuário” de uma forma larga, na qual se poderá incluir a ideia de restauração, isto é, de voltar a ser o que era, sendo necessário para isso: purificá-lo e “restabelecê-lo em todos os seus direitos”.
b) Quanto ao termo santuário (qodesh) – v. 13,14. Esta é a tradução mais frequente. Esta maneira de traduzir tem que ver com a frequente utilização deste termo no Antigo Testamento em relação ao santuário, seja ele com referência ao terrestre (Levítico 4.6; I Crónicas 22.19, etc) ou ao celeste (Salmo 68.5; 102.19).
O que convém recordar e, até certo ponto, reforçar que este santuário aqui mencionado não está, de modo algum, relacionado com o santuário terrestre, visto já não existir. Assim sendo, o único santuário que existe ainda no final do tempo profético é, efectivamente, o celestial.
c) Como vimos, a palavra santuário (qodesh) aponta para uma outra direcção. A intenção do texto em causa compreender-se-á melhor se tivermos em mente, como já o referimos, uma outra ocasião solene para o povo de Deus do passado - o Dia das Expiações - no qual o santuário (qodesh) era purificado (nisdaq) - Levítico 16. 16,19,30.
Assim, um judeu habituado, desde sempre, ao ciclo ritual em que o ano religioso terminava com a purificação do santuário, ao ouvir esta expressão do profeta – santuário purificado (nisdaq qodesh) – não deixaria, de forma alguma, de a associar à do antigo Israel, a do - Dia das Expiações – visando esta, como acima foi dito: - “restabelecê-lo em todos os seus direitos” – o santuário - e, por extensão, o povo.
O santuário terrestre tinha, por isso, necessidade de ser purificado de todos os pecados ali trazidos e acumulados ao longo do ano religioso pelo povo. Assim. Esta festa solene – Dia das Expiações – convidava todo o povo a deixar de lado os afazeres para que pudesse repensar a vida. Assim, da mesma forma, o santuário celeste deveria de ser purificado de todas as faltas acumuladas durante o período que termina no final das 2.300 tardes e manhãs – Daniel 8.13,14.
Abramos um breve parêntesis para analisarmos, ainda que brevemente, o significado da festa anual do Dia das Expiações – Levítico 16.29-34;23.26-29 - para o antigo Israel? Esta representava para um judeu – um verdadeiro dia de juízo – o qual tinha uma calendarização e ritual próprios – “No mês sétimo, ao primeiro do mês tereis descanso (...). Mas aos dez deste mês sétimo será o dia da expiação” – Levítico 23.24,27. Por isso é dito que “os 10 dias que precedem o Yom Kippour (Dia das Expiações) muito cedo foram entendidos como sendo um tempo de probatório, no qual o judeu se preparava para o dia do juízo”. No mesmo sentido é dito que “um dia por ano, o homem esforça-se por servir a Deus, não como homem, mas como se fosse um anjo. (…). O Judeu, no Yom Kippur não come nem bebe seja o que for; observa o mais rigoroso jejum e passa todas as horas de vigília em oração. É nesse dia que encerra os 10 dias de arrependimento que é, finalmente, determinado o julgamento de cada um em vista do novo ano”.
Este dia era de tal maneira tão solene, especial e único para um judeu que, não só para realçar a intimidade que este deveria de ter com o seu Deus, como também para mostrar o como este se encontrava totalmente desligado do quanto o poderia afastar de Deus, foi dito que “o valor numérico das letras que compõem a palavra “satan” (Satanás), em hebraico – Hasatan – é 364, ou seja, o total dos dias de um ano menos um. Satan pode acusar o povo judeu e desencaminhá-lo durante todo o ano, com excepção de um dia: o Yom Kippur”. Fechando o parêntesis.